Por: Ricardo Thomé | Edição: Vitória Guimarães | Fotos: Maria Ferreira dos Santos
Ainda Estou Aqui (Walter Salles, 2024) e Vitória (Andrucha Waddington e Breno Silveira, 2025) foram duas das mais marcantes estreias do cinema brasileiro recentemente. Mais do que se basearem em fatos reais, as produções têm em comum o fato de que suas histórias originais saíram das mãos de dois jornalistas: enquanto Ainda Estou Aqui é a adaptação cinematográfica da obra literária homônima de Marcelo Rubens Paiva (2015), Vitória é a adaptação do livro-reportagem Dona Vitória Joana da Paz (2024), escrita pelo editor-executivo do Jornal Extra, Fábio Gusmão.
A obra de Marcelo Rubens Paiva conta as memórias do próprio Paiva a respeito do desaparecimento de seu pai (Rubens) durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) e os desdobramentos em sua família, com ênfase em sua mãe, Eunice. O livro-reportagem, por sua vez, é o desdobramento da série de reportagens Janela Indiscreta, como contou Gusmão em entrevista à Redação Laboratório. A obra acompanha a trajetória de uma idosa que comprou uma câmera para filmar, da janela de sua casa, o movimento do tráfico de drogas no Rio de Janeiro.
Na tarde deste sábado (12), o 20º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Abraji recebeu, no Teatro ESPM, Fábio Gusmão e Marcelo Rubens Paiva sob mediação de Juliana Dal Piva, diretora da Abraji, para discutir o trabalho de produção jornalística de ambos e o processo de adaptação para o audiovisual de seus escritos na mesa “Ainda Estou Aqui e Dona Vitória: como o jornalismo vira cinema?”.
Marcelo Rubens Paiva: entre alívios e pessimismos
Paiva, em participação on-line, apontou que a obra cinematográfica de Walter Salles — vencedora do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2025 — fez com que a história de Rubens Paiva e as de outras pessoas perseguidas durante a ditadura ficassem mais conhecidas. “O filme chegou no momento perfeito. O livro é de 2015 e, na época, eu não imaginava que pudéssemos chegar a esse ponto [de ascensão da extrema direita no país].”
No entanto, embora a produção tenha dado destaque a essas histórias, o autor se disse pessimista quanto à possibilidade de que haja condenações: “sendo sincero, não tenho esperança em relação a esse julgamento. Quase todos os governos desde então agiram com displicência quanto ao assunto”.
Desde a Lei da Anistia — responsável pelo perdão a crimes políticos cometidos durante todo o período ditatorial até 1979 — pouco foi feito para garantir justiça às vítimas. No entanto, no início deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF), frente às discussões sobre a Lei da Anistia provocadas por Ainda Estou Aqui, comprometeu-se a rediscutir a aplicação dela para casos de desaparecimento durante a ditadura. Até agora, porém, nada aconteceu.

Fábio Gusmão: os tropeços até a Vitória
O autor de Dona Joana Vitória da Paz deu um longo relato sobre o percurso até a publicação das reportagens originais da história de Dona Joana — referenciada, originalmente, apenas com o nome fictício de Dona Vitória, a fim de preservar sua imagem. O jornalista confessou não ter se interessado inicialmente pelas fitas recebidas de um inspetor de delegacia de polícia do Rio de Janeiro. Contudo, à medida que adentrava mais a narrativa, empolgava-se com o potencial dela. “Fiquei obcecado por aquilo. Sabia que seria a história da minha vida, o meu prêmio Esso. E levei ao jornal [Extra] no dia seguinte”.
À época repórter, Gusmão teve o aval para seguir com a investigação e ligou para Dona Joana. A única condição: garantir a segurança dela, afinal, tratava-se de uma senhora de idade em uma zona perigosa. “Fui visitá-la várias vezes para conversar sobre o assunto, mas sempre soubemos que não tinha como publicar aquilo enquanto ela morasse lá”. Dessa forma, a matéria foi ao ar apenas quando Joana deixou a região.
A história, segundo o autor, gerou uma ação concreta e várias condenações, mas o futuro da protagonista era incerto. “Quando coloquei o ponto final, chorei copiosamente. E isso foi porque era uma interrogação, não um ponto final. Eu não sabia o que aconteceria com ela”. Dona Joana “Vitória” da Paz faleceu em 2023, a tempo de se realizar ao saber que seria interpretada por Fernanda Montenegro.
Como não perder uma história: o poder transformador do jornalismo
Ambos os palestrantes falaram sobre o papel que o jornalismo e a literatura podem ter na sociedade. “Acredito na literatura como uma missão. É por meio da cultura que mudamos a mente e o coração das pessoas”, disse Marcelo Rubens Paiva. Ele ainda mencionou reportagens realizadas por ele que tiveram efeito direto na vida das pessoas.
“Na faculdade, discute-se muito sobre a parte ética de o jornalista interferir na história ou não. Mas fez-se necessário”, confessou Fábio Gusmão ao comentar sua relação com Dona Joana . O autor afirmou que foi apenas no contato e no estreitamento de laços com ela que se sentiu seguro para tirar a ideia do papel.
Em entrevista à Redação-Laboratório, ele contou que, apesar de todas as dificuldades, nunca pensou em desistir. “Conforme o tempo passa e as coisas dão errado, você se desanima. E isso é natural. O que não podemos é sair do propósito”, completou. A série de reportagens rendeu vários prêmios e indicações ao jornalista, incluindo o Esso, em 2005.